eu tenho uma tese de que existe esse tipo de pessoas: as pessoas papel de parede.
para deixar a referência bem exposta, sim, estamos falando um pouco do que o Patrick diz ao Charlie de As Vantagens de Ser Invisível — de ele ser essa pessoa que vê as coisas, e entende.
mas, na minha concepção, a construção fica um pouco diferente: as pessoas papel de parede seriam as pessoas que veem tudo, como os papéis de parede em uma sala. mas elas não necessariamente entendem tudo, no sentido de que têm uma posição de necessária aceitação e falta de opinião. é muito mais sobre o testemunho de tudo.
percebeu o trocadilho com o nome do meu blog, né? foi proposital!
mas, vamos lá, vou explicar melhor o que acho sobre esse tipo de pessoas, te dando uma chance para se identificar.
como são as pessoas papel de parede?
primeiramente, como os demais rótulos, esse não é um rótulo eterno e que classifica a experiência inteira de um ser humano. mas, honestamente, entendo que reflete muito sobre uma atitude em relação à vida.
acredito que um dos momentos que foi mais importante na minha compreensão de mim mesma como uma pessoa papel de parede foi certa vez em que cumprimentei uma pessoa que conhecia de vista, e enxerguei nos olhos dela que ela não tinha a mais remota ideia de quem eu era. isso me lembrou duas coisas sobre minha experiência no mundo:
eu me lembro de todo mundo que conheço;
eu sou perfeitamente esquecível. sou só mais uma garota branca, de cabelo castanho meio azul, muito parecida com muitas outras.
e aí, seguindo com a vida depois dessa epifania, comecei a lidar com as situações cotidianas envolvendo conhecidos de um jeito diferente: sempre presumo que os “conhecidos” não se lembram de mim.
e, bom, me ver como alguém que não é vista, sabendo que sempre vejo tudo e todos, me mostrou algo sobre mim que ajudou a nomear este blog: me entendo muito como uma testemunha de tudo. vejo tudo que acontece, percebo detalhes que duvido que muitas pessoas percebem, e, caramba, me lembro de tudo. permaneço na sala quando todos vão, com a pele feita de papel de parede.
e, no fim, esse é um lugar tão confortável de habitar. se você se identifica, não concorda? é muito bom apenas observar as pessoas, transformar elas em história, ser realmente a narradora, a escritora que não se envolve nos fatos. se algum problema está acontecendo, não tento resolver, mesmo que eu tenha uma miscelânea de opiniões sobre como a vida deveria ser. no meu conforto, história é o que crio, é no mundo da lua que vivo; na Terra, estou apenas para assistir tudo de camarote. e os caos colidem, sem minha interferência.
existem momentos, é claro, em que a gente precisa se posicionar — e a gente se esforça, mas isso não é fácil, porque não é da nossa natureza. escrever a história é confortável. fazer parte dela, não.
como uma pessoa papel de parede, seu jeito de levar a vida é outro: você aprende a apreciar os silêncios, os tons que ninguém mais vê, e parece que é mais sensível para tudo na vida que está fora do espectro do visível, audível, tátil — e, ainda assim, você detecta. não é sobre não se sentir parte do mundo, não entendê-lo, e sim sobre assisti-lo de uma outra perspectiva.
e, no fim, reconheça comigo: ser uma pessoa papel de parede é também um lugar de superioridade. se você vê tudo, então está em algum lugar acima que privilegia a visão, em algum lugar inatingível — do tipo que não é feito para humanos pisarem. mas, ainda assim, você habita as nuvens. eu entendo, não dá pra evitar.
mas, aí, quando você menos espera…
a sua quarta parede é quebrada!
você, num momento, esteve silenciosamente habitando uma sala, movendo as coisas para os seus lugares como um elfo trabalhador concentrado — e aí, do nada, alguém te diz que seu cabelo é bonito. você estava andando pela rua, e aí um gato acompanha seus passos e diz “MIAU”, te obrigando a se atrasar alguns minutos para seja lá qual fosse seu compromisso. mais impactante ainda: você é o colo escolhido por um gato; diante de todas as outras possibilidades, aquela criatura mística quis VOCÊ. ou, quando menos esperava, você ouve alguém dizer como gosta de coisas sobre você, que são só suas, só parte de você, que você não consegue evitar, que são rotina. a maior explosão vem quando você é flagrada quebrando a quarta parede, como sempre faz, mas ninguém nota… normalmente.
os dedos atravessam a tela pela qual você vê o mundo, que parecia ser de vidro temperado, mas não é nada além de gelatina.
e aí, eventualmente, nós, pessoas papel de parede, acostumadas a ser parte da mobília, precisamos fazer barulho numa sala. somos chamadas a falar na frente de uma plateia, explicando o livro que escrevemos sobre a vida no qual trabalhamos por todos esses anos de testemunha — e, durante a apresentação, a cor que pinta nossa pele fica estampada no reflexo dos olhos das outras pessoas. tudo fica barulhento e caótico, pisamos na Terra ao invés de voar ao redor das nuvens, e a sensação é ambígua, porque não é nem de longe fácil ser visto.
sim, nós somos papel de parede. mas isso, diferentemente do que eu costumava imaginar toda vez que via conhecidos, não quer dizer que somos invisíveis. o papel de parede ainda está na sala e, às vezes,
as flores do papel de parede se movem
recentemente, ouvi de uma colega que ela se lembrava de mim de uma única vez em que nos conhecemos — e, então, voltei a pensar sobre quantas pessoas podem se lembrar de mim. não que isso seja importante para que eu exista; nós existimos apesar da percepção dos outros sobre nós, sem precisar de validação externa para sermos reais. mas acho que esse comentário dela ajudou a me mostrar que, ainda que o papel de parede seja apenas parte da decoração de uma sala, ele ainda está lá, dando cor a tudo.
então, por mais que seja saudável caminharmos pelo mundo cientes a cada respiro da nossa insignificância, que faz parte do ângulo da experiência humana pelo qual vivemos a vida no geral, também existe valor em lembrar que, às vezes, os papéis se invertem e viramos os personagens de uma história. à la Amelie Poulain, encontramos uma caixa de preciosidades de um desconhecido — e, no momento seguinte, nos pegamos numa aventura épica para encontrá-lo.
e, aí, nesse momento de caos que nos envolve, temos que improvisar nossas próprias falas, ao vivo e nas cores visíveis, sem atmosfera de sonho e abstração. precisamos ser as flores que se movem, porque existem histórias que não dá tempo de testemunhar — só viver.
se você se interessar, escrevi uma prosa poética com essa reflexão (de um jeito um pouco mais melancólico):
construindo caixões para a primavera
nunca foi questão de esperar virar uma pessoa diferente. na verdade, é um pouco mais sutil: quase uma previsão meteorológica de metamorfose. você nunca quis ser alguém diferente, mas passou a vida achando que isso aconteceria. em seus atos imaginados, há traços que não são seus. você sempre desconhece a forma que reage; sempre espera demais de seu coraç…
aproveito esse post mais descontraído para agradecer quem tem me lido aqui. cada curtida, comentário e compartilhamento são presentes imensuráveis. me sentir ouvida e ouvir outros escritores por aqui tem sido fabuloso!